O filme O Auto da Compadecida dirigido por Guel Arraes, em 2000, foi baseada na peça de mesmo título de Ariano Suassuna nos anos 50. É uma comédia que retrata o sertão brasileiro, abrangendo suas camadas sociais a igreja, o comerciante e sua esposa, o coronel detentor de terras, o mané Chicó e seu amigo João Grilo cuja malandragem permite o relacionamento em todos os espaços sociais. O tão famoso "jeitinho brasileiro" é o modo pelo qual João Grilo sobrevive numa realidade miserável. Como destacou Gilmar Rocha, a malandragem é "um campo relacional, pois representa a mediação de uma estrutura bipartida, possibilitando a relativização entre uma ordem e outra".
João Grilo, como o típico malandro, utiliza-se de sua esperteza para conquistar seus objetivos, não se importando com a moral. Para que o malandro seja sucedido no que pretende fazer, e principalmente em cidades onde todos se conhecem, ele não pode manter-se no anonimato. É necessário que se apresente como amigo ou à serviço de alguém que a pessoa com ele está se confrontando tema ou respeite e, segundo Roberto da Matta, a razão está no sistema social que "não se atualiza por meio de papéis universais, mas- ao contrário- por intermédio de identidades sociais precisas", afinal, "relações pessoais tornam a precedência, por assim dizer, dos serviços necessários à operação do sistema e dele nunca se divorcia- como ocorre com nossa sociedade complexa".
Duas cenas do filme merecem destaque. A primeira é quando morre a cachorrinha e João Grilo garante ao padeiro que o padre fará o enterro para o animal em latim, desde que seu patrão o permita gastar o quanto for necessário. João Grilo convence ao padre a fazer o enterro, dizendo que a cachorra havia feito um testamento onde deixava dinheiro para o padre. A segunda cena é quando o bando de Severino invade a cidade e Grilo forja a morte e a ressurreição de Chicó através da gaita milagrosa supostamente benzida pelo Padre Cícero, depois disso convence o Severino a morrer, com a promessa de que o ressuscitaria, para que ele pudesse se encontrar com seu "Padim Ciço". O malandro conhece o calcanhar de Aquiles das pessoas com quem lida- no caso do padre, a ganância e no do Severino, a devoção em Padre Cícero- buscando sempre invalidar a lei quando ela não lhe é favorável.
A malandragem já foi exaltada e a partir de 1970 passou a ser considerada um problema sociológico porque, ao abrir concessões a erros que deveriam ser punidos, a conceder privilégios em nome da boa camaradagem e a justificar nossas falhas e atrasos com os compromissos baseados no argumento de que "o brasileiro tem um jeito próprio de organizar e sempre entrega o que precisa", como afirmou recentemente o ministro Aldo Rebelo-minimizando os atrasos das obras da Copa- vamos permitindo a erros maiores e piores, sem entrar no mérito de que ao privilegiar um, praticamos a desigualdade com os demais. Há, portanto, uma linha tênue entre malandragem e marginalidade.
Para Da Matta "utilizamos o clássico "jeitinho que nada mais é do que um variante do cordial do "você sabe com quem está falando?" e outras formas mais autoritárias que facilitam e permite pular a lei ou nela abrir uma honrosa exceção que a confirma socialmente". A lei, portanto, só se aplicaria a nossos inimigos.
É mister a reflexão se é esse o modelo que queremos reproduzir, embora haja o pessimismo que nos impede de acreditar que veremos mudanças. Talvez nos reste apenas, concordar com a filosofia de Chicó de que somente a morte "iguala tudo que é vivo".
Escrito em maio de 2012 pra disciplina de Cultura e Identidade Brasileira. É legal ler textos que você escreveu há meses e notar como sua escrita melhora com o tempo.
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